Jorge Caetano Fernandes

A moça Mbique

Kulungwana | Maputo

Texto do Curador

No século 21, o status quo da pintura é como nunca antes. Por causa da internet, estamos conectados ao mundo e às suas histórias numa vasta biblioteca de imagens acessível a todos. A tendência é acelerar o processo de produção, ser rápido e reagir imediatamente ao que está a acontecer socialmente em escala global. No século 20, os artistas lutaram por uma liberdade que a geração atual explora à vontade. Professores de técnica estão dentro do alcance, assim como livros gratuitos que explicam a disciplina necessária para o realismo. Não há segredos na pintura, não mais, tudo já foi feito e podemos ver nos nossos ecrãs num instante, então, qual seria o próximo passo?

Fernandes nasceu em Maputo, cresceu na Holanda e lá viveu vinte e dois anos. Durante este tempo estudou artes plásticas em Haia e regressou a Maputo em 2013. O Jorge disse- me várias vezes que começou a pintar a sério apenas quando regressou ao seu local de nascimento e foi por volta de 2015 que tomou a decisão. Era uma questão de voltar a isso, pois ele desenhava desde sempre.

Durante os nove anos na cidade, Fernandes fez fotos de pessoas, edifícios, plantas, paisagens, tudo o que achou interessante. Assim criou um banco de dados de dezenas de milhares de fotos, que, combinado com a internet, forma a biblioteca visual na qual as pinturas se baseiam. Pode levar anos até que ele realmente use uma ou duas dessas fotos como base para uma pintura. Em termos práticos, a fotografia e a posterior edição de imagem funcionam como esboços para as obras.

Através de conversas ao longo dos últimos anos e do testemunho da criação de muito trabalho do Jorge percebi que Fernandes se interessa bastante pelo que acontece na sociedade. Ele interpreta Maputo da mesma forma que os surrealistas antigos interpretam os sonhos: com a teoria psicológica numa mão e uma câmara fotográfica na outra. Embora se possa dizer que Fernandes emprega um maneirismo surrealista, o trabalho tem uma intenção social-realista, que significa que ele parece tentar abordar a dinâmica da sociedade através da linguagem da pintura figurativa. Certa vez, numa conversa, chamei seu trabalho de 'misticismo social', ele não se opôs a isso. Jorge inspira-se na situação de Maputo, escolhendo indivíduos específicos para fazer um comentário social depois de ler os documentos do IESE. As pessoas nas obras de Fernandes tornam-se parte de um vocabulário visual, e parecem estar cientes disso. Muitas vezes o foco está num sujeito isolado, que se aparece localizado num espaço entre o real e uma paisagem onírica.

Há uma tensão silenciosa nas obras que traz uma atmosfera enigmática, como se houvesse segredos um pouco além do que se mostra. As figuras parecem estar dentro do assunto, algumas olham diretamente para o espectador como se estivessem plenamente conscientes de quem está olhando para elas e por quê.

Ao olhar para suas obras dos últimos nove anos, pode-se ver três ou quatro minisséries, se quiserem, que formaram os vários capítulos da exposição. Os arquétipos são o alfabeto de um subconsciente social, disse o psicanalista Gustav Jung. São padrões básicos de comportamento, configurações elementares do nosso ser central que formam o fundamento da sociedade. A linguagem arquetípica usada por Fernandes retrata uma visão de mundo em que divindades antigas e contemporâneas fazem parte do mesmo mundo que os cidadãos comuns. Alguns dos plebeus parecem ter-se transformado em deuses. É como se eles tivessem um papel a desempenhar numa ópera de proporções galácticas que só é sentida, mas não conhecida. Um conto impenetrável se manifesta entre as próprias pinturas, esperando que o espectador a descodifique.

Não há tomada de posição política, mas é claro que Fernandes tenta criar uma arte que desafie o status quo social. Alguns cidadãos, por exemplo um filósofo chamado Ngoenha, inspiraram a criação de personagens fictícios que se transformaram em pintura. 'Ngoenha Rex' (2021)

Michele Santoro Junho 2022

 

 

Comunicado de Imprensa

Inauguração da Exposição Individual de Artes Plásticas “A MOÇA MBIQUE”, de Jorge Fernandes De 11 de Agosto a 2 de Setembro de 2022

Inaugura-se a 11 de Agosto, pelas 17,00 horas, na Sala de Espera da Kulungwana, sita na Estação Ferroviária de Maputo, a exposição individual de artes plásticas “A MOÇA MBIQUE”, de Jorge Fernandes. Esta exposição prolonga-se até 2 de Setembro p.f.

A Associação Kulungwana apresenta, desta vez, uma exposição individual de Jorge Fernandes. Apesar do artista estar na cena artística local desde 2015, com uma actividade multifacetada (exposições colectivas, performances, docência, palestras e curadorias), realiza agora verdadeiramente a sua primeira individual. Nascido em Moçambique, com um bacharelato em Belas-Artes pela Academia Real de Belas-Artes (KABK), de Haia (Holanda), onde residiu durante cerca de 22 anos, o artista regressou a Moçambique em 2013, tendo-se profissionalizado em 2015. Segundo o artista, o seu trabalho tem incluído progressivamente pessoas locais, “até ao ponto em que o trabalho é directamente sobre elas”. A partir da investigação da consciência multimensional dos seres humanos, apresenta os resultados da mesma em forma de pintura e banda desenhada. “Eu me esforço para combinar a realidade do sonho com o material, o racional com a intuição, a realidade cotidiana que vemos ao nosso redor com visões além do tempo e do espaço. A psicologia individual e de massas são ciências de alto valor para mim, pois me permitem pensar que entendo o que está acontecendo na sociedade, de modo que posso traduzi-lo de forma pictórica”. Assim, o artista fotografou tudo o que lhe pareceu interessante, tendo criado uma imensa base de dados, que, em combinação com a internet, lhe permite criar o suporte sobre o qual as suas pinturas se elaboram. Segundo o curador da exposição, Michele Santoro, embora “Fernandes empregue um maneirismo surrealista, o trabalho tem uma intenção social-realista, que significa que ele parece tentar abordar a dinâmica da sociedade através da linguagem da pintura figurativa”. “Ao olhar para suas obras dos últimos nove anos, pode-se ver três ou quatro minisséries, se quiserem, que formaram os vários capítulos da exposição. Os arquétipos são o alfabeto de um subconsciente social, disse o psicanalista Gustav Jung. São padrões básicos de comportamento, configurações elementares do nosso ser central que formam o fundamento da sociedade. A linguagem arquetípica usada por Fernandes retrata uma visão de mundo em que divindades antigas e contemporâneas fazem parte do mesmo mundo que os cidadãos comuns. Alguns dos plebeus parecem ter-se transformado em deuses. É como se eles tivessem um papel a desempenhar numa ópera de proporções galácticas que só é sentida, mas não conhecida. Um conto impenetrável que se manifesta entre as próprias pinturas, esperando que o espectador a descodifique”.

E conclui: “Não há tomada de posição política, mas é claro que Fernandes tenta criar uma arte que desafie o status quo social”.